segunda-feira, 12 de setembro de 2016

E Madalena morreu...

Era tudo vazio. Vazio de imagens, de sons, de odores... Não havia nada. As sensações se desfaziam em uma escuridão espiral que parecia convidar para um passeio etéreo e misterioso. A dúvida entre entregar-se a uma viagem ao desconhecido e a resistência em permanecer conectada a realidade, a mantinha respirando lentamente.
O esforço para compreender o que estava acontecendo a fazia voltar. Primeiro foi o olfato. O rosto encostado no chão e a ofegante inspiração traziam aos seus pulmões o cheiro da terra, das pedras e da poeira. Mas havia mais alguma coisa. Conhecia aquele cheiro de ferrugem. Lembrou! Era sangue. Não era a primeira vez que o sentia. Mas de quem seria? Quem estaria ferido? Estaria sendo socorrido?
Na angústia para organizar os pensamentos começou a perceber seu corpo. Não! Não estava sentindo todo ele. O que sentia era frio. As pernas, por mais força que fizesse, pareciam não estar lá, ou se recusavam responder. Ainda faziam parte do vazio. Mas sentia os braços. Uma de suas mãos, aberta, estava inerte ao lado do rosto. E ali estava, também, o motivo do cheiro. O líquido viscoso que entremeava seus dedos era, mesmo, sangue. Era o seu sangue que escorria na rua.
O que teria acontecido?
Não conseguia lembrar. Sua mente ainda parecia em dúvida entre dois mundos, onde ambos se apresentavam surreais.
Precisava ficar. Pelo menos até entender o que havia ocorrido. – Pense... – Pense... Determinava a si própria.
A vontade de sair desse estranho e interminável limbo despertava, parcialmente, seus sentidos. Mesmo que parecessem pesar toneladas, insistia para que suas pálpebras se levantassem e seus olhos se abrissem. Era quase impossível. Pela pequena abertura que conseguiu apenas uma luz opaca entrava. Não havia como distinguir qualquer imagem.
Mas a luz estimulou seu cérebro. Estava lembrando!
Havia saído para trabalhar como fazia todos os dias. Apesar de muitos dizerem que ela era de vida fácil, ralava muito para se sustentar. As noites insones, os clientes violentos, a intolerância e o preconceito social não faziam de sua rotina algo que pudesse ser classificado como fácil. Mas precisava trabalhar. A despeito da lei e da religião condenarem sua profissão, era dali que vinha sua sobrevivência.
Um sacerdote já havia lhe dito, uma vez, que o que ela fazia era pecado contra Deus e contra os homens e chegaria o dia em que ela seria julgada. Disse ainda que por sua desobediência às leis da natureza, somente sua morte poderia lhe expiar dos males terrenos e lhe dar condições de uma vida eterna.
Teria ele falado figuradamente ou teria feito uma profecia?
A sua confusão mental não lhe permitia definir o tempo. Cenas de pessoas que, assim como ela, se prostituíam, passavam em uma tela imaginária. Os horrores que muitas já tinham sofrido lhe eram apresentados em uma sequência aterradora. Fogueiras, esquartejamentos, afogamentos e apedrejamentos feitos para que seus erros e seus consequentes castigos servissem de lição para aqueles que atentassem contra a ordem e os desígnios de Deus para os homens e mulheres.
Isto faria parte de suas lembranças ou da memória coletiva da humanidade?
A reflexão lhe provocou um lampejo de lucidez que lhe trouxe esperança e ao mesmo tempo perplexidade. Estava conseguindo juntar os pedaços do quebra-cabeças: caída ao chão, cheiro de terra, seu sangue molhando as pedras ao redor de seu próprio corpo, a dor que, agora, se anunciava gradativamente a partir de um ferimento em sua cabeça – e que provavelmente era a origem do sangue. Estava tudo explicado: ela havia sido apedrejada por seus pecados.
Mas que pecados? Que mal havia feito àquelas pessoas que, com o retorno lento da sua audição, ouvia falando à sua volta? Porque apedrejar alguém que estava trabalhando honestamente sem prejudicar ninguém? Que leis são essas que permitem a morte de alguém por se prostituir? Que Deus é esse que não perdoa aquelas que não tiveram outra oportunidade na vida e precisaram trabalhar como profissionais do sexo?
Ela havia ouvido falar de um homem chamado Jesus que afirmava serem todos filhos de Deus e que Aquele, como Pai, dava-nos liberdade de escolha e nos perdoava pelos erros eventualmente cometidos. Como ela queria que esse homem aparecesse. Ele a compreenderia, ele não a condenaria e, talvez, a salvaria daquele suplício. Tinha certeza que esse homem não concordaria com a justiça e a religião que a haviam colocado naquela situação.
Precisava entender que justiça e que religião são essas.
Mas era muito difícil. Não apenas porque na sua compreensão não havia lógica, mas porque o seu coração batia cada vez mais lento e a energia que lhe restava diminuía vagarosamente, como a lhe dar uma última chance para analisar as incoerências de uma sociedade hipócrita, que usava seus serviços e, ao mesmo tempo, a condenava por oferecê-los publicamente.
Não podia desperdiçar essa oportunidade de aprendizado. Precisava ver o que compunha aquele cenário de execução. Precisava abrir os olhos...
A visão já habituada com a escuridão surgiu embaralhada e ofuscada pelas luzes. Mas não era apenas a luz do sol. Algumas silhuetas imóveis e outras em movimento a cercavam. A audição, assim como seus olhos, voltava a funcionar. Uma pequena multidão a observava a poucos metros, na sua grande maioria homens.
Alguns em voz baixa e outros, com a nítida intenção de chamar atenção sobre sua opinião, vociferavam:
- Teve o que mereceu! Dizia um.
- Se fizesse isso com todas o mundo ficaria livre dessa raça! Afirmava outro.
Quem e por que alguém, que ela sequer conhecia, teria tanta raiva dela? Porque só agora, moribunda e atirada na rua, chamava atenção das pessoas? Porque, nos outros dias, enquanto trabalhava, era invisível para os passantes? Quantas perguntas sem respostas. Mas tinha mais uma: Onde estaria o homem Jesus que perdoava todos os pecadores e ao invés de condená-los, os acolhia e consolava?
Como ela gostaria que ele estivesse ali.
Mas sua tênue audição captou a pronúncia do nome dele. Alguém havia proferido o nome de Jesus. Juntou todas as energias. Precisava saber quem era e se sabia onde encontra-lo.
Mesmo com os sentidos ainda embaralhados, aguçou olhos e ouvidos. Vislumbrou um homem com um livro preto na mão e na capa do volume uma cruz. Tinha que ser o que perdoa. Ele precisava dizer para aquelas pessoas que ela não era má e que deveriam aceita-la como a qualquer outro.
A decepção, porém, tomou conta novamente.
O homem com o livro empunhou-o com ambas as mãos, levantou-o para o alto, direcionou o rosto para o céu, fechou os olhos e fez uma oração:
- Deus, livra, não só essa pecadora, mas toda a tua criação dos desvios morais de Satanás e queima no lago de fogo e enxofre, para onde já o mandou, todos aqueles que concordam ou vivem com essas perversões e faça com que Jesus habite em nossos corações. Amém.
Não era o Jesus que a tomaria pelas mãos, a ergueria do chão e diria: “- Vinde a mim vós que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei”. Mas ele devia estar em algum lugar. Mas onde? Como permitia que pessoas falassem no nome dele e, ao mesmo tempo, concordassem, com a violência que ela havia sofrido?
Será que em algum tempo, no futuro, as pessoas serão mais tolerantes e respeitarão a forma como as demais vivem? Obedecerão aos ensinamentos de Jesus ou apenas usarão seu nome em vão?
Os sentidos, subitamente, se direcionaram para uma luz forte que se movia em sua direção. Um barulho forte de motor, que agora distinguia, e o cheiro de combustível acompanhavam um homem que a passos largos chegou bem próximo a ela. A roupa cinza, o boné branco e as botas quase encostadas no seu rosto, a fez lembrar da figura dos policiais que, por muitas vezes, a agrediram e às suas amigas, bem como levaram o dinheiro que haviam ganho com uma noite inteira de trabalho.
A memória estava revivendo. Estava no cruzamento das ruas onde fazia ponto todas as noites, mas ainda faltavam informações. O que havia acontecido a ela?
A voz do policial e o diálogo ao rádio da viatura a trouxe ao foco novamente.
- Central é a viatura 247. Chamou o policial.
- Prossiga 247.
- Tentativa de homicídio na Marechal equina com Dezoito.
- A ambulância está em deslocamento. Informou a central.
- Acho que essa aqui já foi... Respondeu o policial se afastando.
- Informe o nome e idade da vítima. Solicitou a central.
- Davenir Gomes Soares, 32 anos. Confirma o RG Central: 2568932011.
- Positivo para o nome Davenir. Mas no telefone disseram que era uma mulher. Pode confirmar? Insiste a central.
- Positivo central. Travesti conhecida da guarnição. Vulgo Madalena.
Tudo estava claro agora. O local onde trabalhava era o mesmo, os policiais que rondavam aquela área eram os mesmos, as pessoas que jogavam pedra, cuspiam e tentavam atropelá-la à noite eram as mesmas. A agressão, porém, desta vez, havia sido mais grave.
Ironia do destino. Durante os três anos, em que trabalhara naquele lugar, havia sido chamada de inúmeras coisas. Ninguém, em momento algum, havia lhe perguntado o nome. Mas pelo menos, no que talvez fosse a última vez, tinham reconhecido seu nome social e a chamado de Madalena.
Tudo começava a apagar novamente.
Era o fim.
Era tudo escuro. Era tudo vazio. Vazio de imagem, de som, de odor... E de amor.

E Madalena morreu...

                  Joaldo Nery
       Acadêmico de Jornalismo

Nenhum comentário:

Postar um comentário