Era
tudo vazio. Vazio de imagens, de sons, de odores... Não havia nada.
As sensações se desfaziam em uma escuridão espiral que parecia
convidar para um passeio etéreo e misterioso. A dúvida entre
entregar-se a uma viagem ao desconhecido e a resistência em
permanecer conectada a realidade, a mantinha respirando lentamente.
O
esforço para compreender o que estava acontecendo a fazia voltar.
Primeiro foi o olfato. O rosto encostado no chão e a ofegante
inspiração traziam aos seus pulmões o cheiro da terra, das pedras
e da poeira. Mas havia mais alguma coisa. Conhecia aquele cheiro de
ferrugem. Lembrou! Era sangue. Não era a primeira vez que o sentia.
Mas de quem seria? Quem estaria ferido? Estaria sendo socorrido?
Na
angústia para organizar os pensamentos começou a perceber seu
corpo. Não! Não estava sentindo todo ele. O que sentia era frio. As
pernas, por mais força que fizesse, pareciam não estar lá, ou se
recusavam responder. Ainda faziam parte do vazio. Mas sentia os
braços. Uma de suas mãos, aberta, estava inerte ao lado do rosto. E
ali estava, também, o motivo do cheiro. O líquido viscoso que
entremeava seus dedos era, mesmo, sangue. Era o seu sangue que
escorria na rua.
O que
teria acontecido?
Não
conseguia lembrar. Sua mente ainda parecia em dúvida entre dois
mundos, onde ambos se apresentavam surreais.
Precisava
ficar. Pelo menos até entender o que havia ocorrido. – Pense... –
Pense... Determinava a si própria.
A
vontade de sair desse estranho e interminável limbo despertava,
parcialmente, seus sentidos. Mesmo que parecessem pesar toneladas,
insistia para que suas pálpebras se levantassem e seus olhos se
abrissem. Era quase impossível. Pela pequena abertura que conseguiu
apenas uma luz opaca entrava. Não havia como distinguir qualquer
imagem.
Mas a
luz estimulou seu cérebro. Estava lembrando!
Havia
saído para trabalhar como fazia todos os dias. Apesar de muitos
dizerem que ela era de vida fácil, ralava muito para se sustentar.
As noites insones, os clientes violentos, a intolerância e o
preconceito social não faziam de sua rotina algo que pudesse ser
classificado como fácil. Mas precisava trabalhar. A despeito da lei
e da religião condenarem sua profissão, era dali que vinha sua
sobrevivência.
Um
sacerdote já havia lhe dito, uma vez, que o que ela fazia era pecado
contra Deus e contra os homens e chegaria o dia em que ela seria
julgada. Disse ainda que por sua desobediência às leis da natureza,
somente sua morte poderia lhe expiar dos males terrenos e lhe dar
condições de uma vida eterna.
Teria
ele falado figuradamente ou teria feito uma profecia?
A sua
confusão mental não lhe permitia definir o tempo. Cenas de pessoas
que, assim como ela, se prostituíam, passavam em uma tela
imaginária. Os horrores que muitas já tinham sofrido lhe eram
apresentados em uma sequência aterradora. Fogueiras,
esquartejamentos, afogamentos e apedrejamentos feitos para que seus
erros e seus consequentes castigos servissem de lição para aqueles
que atentassem contra a ordem e os desígnios de Deus para os homens
e mulheres.
Isto
faria parte de suas lembranças ou da memória coletiva da
humanidade?
A
reflexão lhe provocou um lampejo de lucidez que lhe trouxe esperança
e ao mesmo tempo perplexidade. Estava conseguindo juntar os pedaços
do quebra-cabeças: caída ao chão, cheiro de terra, seu sangue
molhando as pedras ao redor de seu próprio corpo, a dor que, agora,
se anunciava gradativamente a partir de um ferimento em sua cabeça –
e que provavelmente era a origem do sangue. Estava tudo explicado:
ela havia sido apedrejada por seus pecados.
Mas
que pecados? Que mal havia feito àquelas pessoas que, com o retorno
lento da sua audição, ouvia falando à sua volta? Porque apedrejar
alguém que estava trabalhando honestamente sem prejudicar ninguém?
Que leis são essas que permitem a morte de alguém por se
prostituir? Que Deus é esse que não perdoa aquelas que não tiveram
outra oportunidade na vida e precisaram trabalhar como profissionais
do sexo?
Ela
havia ouvido falar de um homem chamado Jesus que afirmava serem todos
filhos de Deus e que Aquele, como Pai, dava-nos liberdade de escolha
e nos perdoava pelos erros eventualmente cometidos. Como ela queria
que esse homem aparecesse. Ele a compreenderia, ele não a condenaria
e, talvez, a salvaria daquele suplício. Tinha certeza que esse homem
não concordaria com a justiça e a religião que a haviam colocado
naquela situação.
Precisava
entender que justiça e que religião são essas.
Mas
era muito difícil. Não apenas porque na sua compreensão não havia
lógica, mas porque o seu coração batia cada vez mais lento e a
energia que lhe restava diminuía vagarosamente, como a lhe dar uma
última chance para analisar as incoerências de uma sociedade
hipócrita, que usava seus serviços e, ao mesmo tempo, a condenava
por oferecê-los publicamente.
Não
podia desperdiçar essa oportunidade de aprendizado. Precisava ver o
que compunha aquele cenário de execução. Precisava abrir os
olhos...
A
visão já habituada com a escuridão surgiu embaralhada e ofuscada
pelas luzes. Mas não era apenas a luz do sol. Algumas silhuetas
imóveis e outras em movimento a cercavam. A audição, assim como
seus olhos, voltava a funcionar. Uma pequena multidão a observava a
poucos metros, na sua grande maioria homens.
Alguns
em voz baixa e outros, com a nítida intenção de chamar atenção
sobre sua opinião, vociferavam:
-
Teve o que mereceu! Dizia um.
-
Se fizesse isso com todas o mundo ficaria livre dessa raça! Afirmava
outro.
Quem
e por que alguém, que ela sequer conhecia, teria tanta raiva dela?
Porque só agora, moribunda e atirada na rua, chamava atenção das
pessoas? Porque, nos outros dias, enquanto trabalhava, era invisível
para os passantes? Quantas perguntas sem respostas. Mas tinha mais
uma: Onde estaria o homem Jesus que perdoava todos os pecadores e ao
invés de condená-los, os acolhia e consolava?
Como
ela gostaria que ele estivesse ali.
Mas
sua tênue audição captou a pronúncia do nome dele. Alguém havia
proferido o nome de Jesus. Juntou todas as energias. Precisava saber
quem era e se sabia onde encontra-lo.
Mesmo
com os sentidos ainda embaralhados, aguçou olhos e ouvidos.
Vislumbrou um homem com um livro preto na mão e na capa do volume
uma cruz. Tinha que ser o que perdoa. Ele precisava dizer para
aquelas pessoas que ela não era má e que deveriam aceita-la como a
qualquer outro.
A
decepção, porém, tomou conta novamente.
O
homem com o livro empunhou-o com ambas as mãos, levantou-o para o
alto, direcionou o rosto para o céu, fechou os olhos e fez uma
oração:
-
Deus, livra, não só essa pecadora, mas toda a tua criação dos
desvios morais de Satanás e queima no lago de fogo e enxofre, para
onde já o mandou, todos aqueles que concordam ou vivem com essas
perversões e faça com que Jesus habite em nossos corações. Amém.
Não
era o Jesus que a tomaria pelas mãos, a ergueria do chão e diria:
“- Vinde a mim vós que estais cansados e oprimidos e eu vos
aliviarei”. Mas ele devia estar em algum lugar. Mas onde? Como
permitia que pessoas falassem no nome dele e, ao mesmo tempo,
concordassem, com a violência que ela havia sofrido?
Será que em algum tempo, no futuro, as pessoas
serão mais tolerantes e respeitarão a forma como as demais vivem?
Obedecerão aos ensinamentos de Jesus ou apenas usarão seu nome em
vão?
Os
sentidos, subitamente, se direcionaram para uma luz forte que se
movia em sua direção. Um barulho forte de motor, que agora
distinguia, e o cheiro de combustível acompanhavam um homem que a
passos largos chegou bem próximo a ela. A roupa cinza, o boné
branco e as botas quase encostadas no seu rosto, a fez lembrar da
figura dos policiais que, por muitas vezes, a agrediram e às suas
amigas, bem como levaram o dinheiro que haviam ganho com uma noite
inteira de trabalho.
A
memória estava revivendo. Estava no cruzamento das ruas onde fazia
ponto todas as noites, mas ainda faltavam informações. O que havia
acontecido a ela?
A
voz do policial e o diálogo ao rádio da viatura a trouxe ao foco
novamente.
-
Central é a viatura 247. Chamou o policial.
-
Prossiga 247.
-
Tentativa de homicídio na Marechal equina com Dezoito.
-
A ambulância está em deslocamento. Informou a central.
-
Acho que essa aqui já foi... Respondeu o policial se afastando.
-
Informe o nome e idade da vítima. Solicitou a central.
-
Davenir Gomes Soares, 32 anos. Confirma o RG Central: 2568932011.
-
Positivo para o nome Davenir. Mas no telefone disseram que era uma
mulher. Pode confirmar? Insiste a central.
-
Positivo central. Travesti conhecida da guarnição. Vulgo Madalena.
Tudo
estava claro agora. O local onde trabalhava era o mesmo, os policiais
que rondavam aquela área eram os mesmos, as pessoas que jogavam
pedra, cuspiam e tentavam atropelá-la à noite eram as mesmas. A
agressão, porém, desta vez, havia sido mais grave.
Ironia
do destino. Durante os três anos, em que trabalhara naquele lugar,
havia sido chamada de inúmeras coisas. Ninguém, em momento algum,
havia lhe perguntado o nome. Mas pelo menos, no que talvez fosse a
última vez, tinham reconhecido seu nome social e a chamado de
Madalena.
Tudo
começava a apagar novamente.
Era
o fim.
Era
tudo escuro. Era tudo vazio. Vazio de imagem, de som, de odor... E de
amor.
E
Madalena morreu...
Joaldo Nery
Acadêmico de Jornalismo